18 de outubro de 2006

Al Berto O Lunário

Sempre levei na bagagem muito pouca coisa» pensou Beno, esticando o pescoço para a frente de modo a seguir o voo sinuoso duma gaivota no enquadramento da janela.
«Uma ou duas camisas, t-shirts, dois ou três pares de calças e uma infinidade de minúsculos objectos que nunca me serviam para nada. Viajei com o absolutamento necessário e ao chegar a qualquer lugar comprava o que me fazia falta, depois, assim que prosseguia caminho, deitava tudo fora. Sempre achei que o que me era útil e necessário num sítio deixaria de ser noutro...» Beno estava sentado perto da janela e olhava o mar atraves dos vidros foscos pela poeira.
Desde o seu regresso, tinha o hábito de se sentar ali, como uma obsessão, ao escurecer. Imóvel, o olhar perdido por cima do mar, deixava a memória fiar os acontecimentos, laboriosamente, com o repetido movimento das marés. Não tinha mais nada que fazer.
A gaivota saíra do enquadramento da janela e Beno, estendendo as pernas, voltou à posição inicial, encolhendo-se na cadeira. Suspirou acendeu um cigarro ao mesmo tempo que retomava a teia do pensamento: «Nesse tempo, não tinha casa de amigos ou em quartos de pensão, por onde ia largando um rasto de tralha que sempre transportava comigo. Tralha inútil ... mas nunca me rodeei verdadeiramente de objectos, nunca possuí coisas, e com o rodar dos anos acabei por desfazer-me dos poucos que guardei e em mim evocavam encontros felizes, fortuitas cumplicidades, ou simples travessias da noite das cidades.»
Uma brisa noctuna e carregada de sal desatou a soprar. O dia começava a morrer. A espuma das ondas tornara-se quase vermelha, a água ardia. Beno sentiu-se envolto numa espécie de torpor que o cegava. Olhava o mar, pressentia-o mais do que, na verdade, o via. E tudo o que via afinal, não era senão uma mancha azulada estendendo-se a perder de vista, metalizada e ondulante, onde o crepúsculo derramava breves incêndios.

Al Berto in Lunário Excerto de Crepúsculo

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