5 de novembro de 2003

Alucinação

Os estridentes e sibilantes gritos metálicos dos carris davam calor a uma carruagem mergulhada no silêncio ensurdecedor de si mesma. Jeremias, jovem universitário e eterno decifrador do enigma da vida, encontrava-se como em todas as manhas a bordo de uma carruagem de metro, a caminho da sua faculdade. - Sentado num dos bancos do meio, com os headphones nos ouvidos, ia sussurrando uma melodia irreconhecível e orquestrava o ritmo com as mãos sobre os joelhos. Jeremias odiava o metro, ou o «cemitério de gente» como gostava de lhe chamar, observava a massa impessoal e disforme de pessoas sem sorriso, sem voz sem calor e odiava-as por isso. Há já muito que observava a castradora rotina dos passageiros fortuitos, sim... ele conhecia bem os rostos sem luz e sem voz, os olhares inseguros e desesperados, o pesado silêncio que queima e revela a mentira que todos sabem de cor. Jeremias não compreendia a mórbida rotina que os tornava dormentes, nem a necessidade que tinham de se refugiar, apavorados de si mesmos, no silêncio, no olhar cabisbaixo e no rosto fechado, petrificado como se de alguma penitência se tratasse. Ah !... Como odiava tudo aquilo, como tudo lhe cheirava a pôdre e a falso (!), e quando observava aquela massa compacta e maquinalmente ordenada a percorrer as galerias subterrâneas sobre uma esteira rolante de metal, inevitavelmente percorria-lhe pela mente a imagem de um qualquer matadouro onde os animais são conduzidos à morte, ordeira e pacientemente aguardando a sua vez…

(Continua)