10 de outubro de 2004

percepção

A sujidade trazida da chuva da noite de ontem lambuzou a calçada. Por isso, seguras-te ao meu braço para não te deixares levar pelo vento que sopra repentinamente gelado e te cora o nariz. A chuvada de ontem, que não demos conta, percebe-se pelos contentores de lixo tombados do outro lado do passeio, pelo batuque das últimas pingas nas nossas cabeças e pela crise de gente na cidade. Revela-se na forma como nos tratamos e nos entendemos, envolvidos numa feliz sequência de símbolos que dizem respeito aos dois e nos submetem ao confortável silêncio de quem se compreende e se lembra. A uma pequena distância nos vimos a vaguear pelas ruas, a entrar em livrarias (cada um para seu lado), ou a procurar o calor das castanhas, onde sempre te interessavas em conferir se porventura algum verme se encarregara de arruinar aquele petisco. Talvez um ou outro aparecesse e logo me pedias, num olhar de pedinte, fascinante e irresistível que te desse as minhas.
A uma pequena distância nos recordamos dos dias de Inverno, em que decidíamos recusar o conforto da lareira e nos fazíamos com todo o fervor ao frio que fazia lá fora. Então, devidamente agasalhados, caminhávamos em direcção ao mar e à estação de comboios onde nos sentávamos no banco de sempre e sentíamos no corpo a leve brisa húmida que nos pedia o calor aconchegante da nossa companhia. Hoje, perscrutamos o céu à procura de nuvens, percebemos que está carregado, que a chuva ameaça romper na nossa direcção, que o ar arrefecido dificulta os movimentos, que os contentores do lixo caídos na estrada impedem que os carros avancem, que os agasalhos que trouxemos não chegam, que somos só nós dois e que tudo isso pouco nos importa porque se tratam de oportunas reminiscências que não queremos esquecer.
Depressa a escuridão nos envolve, a chuva torrencial cai sem cessar, as roupas molhadas se colam ao corpo e depressa eu acolho as tuas mãos geladas que procuram a todo o custo o quente dos bolsos do meu casaco. Aqui nos aproximamos sem paralelo, aqui percebemos que somos nuvens, que somos o nosso confortante e permanente abrigo e que a frigidez prescindível da matéria está no resto.

1 comentário:

Marta disse...

Excelente descrição do momento. beijo