29 de janeiro de 2008

os génios os loucos e os oportunistas

Nas palavras mete-se o que se quiser e diz-se o que se quer, escreve-se o que se quer e finge-se sentir, pensar, querer assim, como se escreve.
Nos livros e noutros transportes da arte encontra-se o génio de quem parece pensar diferente, de quem coloca as palavras desordenadas, desorientadas, figuradamente anárquicas em poesia ou em prosa ou nas disposições da alma e na criatividade de artista.

Na vida o génio confunde-se. Mistura-se uma certa necessidade aparente de ser louco com a impossibilidade de não o ser na vida e com os outros, com os próximos.
Deixo de compreender o génio quando se desculpam as malvadezes e as perversidades e as justificam com o dom
carregado ao longo da vida.
A alma acolhe a transformação de nós em nós quando nós nos transportamos para as artes. Quando a forma de arte se opõe à alma, deixa de ser verdadeira e passa a ser uma farsa imensa de quem quer ser louco na poesia, na literatura, na pintura e acima de tudo na sua relação com os outros, na forma como abandona a vida.
O prémio é egoísta, comodista e interesseiro. A opção de se ser louco para se ser génio é triste, apesar de compreender que a loucura e a criatividade conduzam à genialidade, não compreendo a obrigação de ser louco para ser génio.
Independentemente de reconhecer ou não o génio nunca reconhecerei o louco, o homem, a sua vida. Nunca elogiarei nem louvarei quem use a loucura para se conduzir a si mesmo, quem use os outros sob a sua muleta, os magoe e os desrespeite para se alcançar a si mesmo e ao mesmo tempo se perder.
Reconheço a obra. Nada mais.




Comunidade, Contraponto, 1964

Somos gente pura: os mais novos não sabem o que é a promiscuidade, a minha rapariga se vir a palavra escrita deve achá-la muito comprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (...) A promiscuidade: eu gosto. Porque me cheira a calor humano, me sobe em gosto de carne à boca, me penetra e tranquiliza, me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim, libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas, umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos do corpo, trepidações de bicharada. E a confusão dos corpos, quando se devoram presos pelos sexos e as bocas. E as mãos, que agarram e as pernas, que enlaçam. Máquinas que nós somos, máquinas quase perfeitas a bem dizer maravilhosas, inda que frágeis, como não admirar as nossas peças, molas e válvulas e veias, todas elas animadas por um sopro que lhes parece alheio mas sai do seu próprio movimento, do arfar, dos uivos do animal, do desespero do anjo caído. (...) A curva flutuante de um seio de donzela, a provocação que é a anca do efebo ou da ninfa, tão parecidas que se confundem; a amplidão do olhar e os seus mistérios, esquivas e trocadilhos - íntima largueza do reino da alma que jamais encontrarás seu fundo, e a cor alacre arrebatada duma risada; os passos, o cetim da pele, o emaranhado dos pêlos do púbis, e a alegria loira duma cabeleira solta, desmanchada nos abraços, saindo triunfal duma cama semidesfeita. A persuasão da fala, a fenda estreita que é a porta do paraíso e as outras mil maneiras ,de ver e gostar de ver um corpo ser nosso, subjugado por uma técnica ou o seu próprio desejo dissoluto; e tudo assoprado por dentro, tudo recheado de novas grutas ainda por explorar e que também jamais as conhecerás ou iluminarás todas, se elas a si mesmas se ignoram. Tudo cativado por uma divindade que é o todo, que é o Corpo, em risos e gritos, balbuceios de orgasmo e ranger de dentes; e a solidão duma lágrima lenta que desce a face no silêncio e na amargura; e o resfolegar do moribundo que já nada quer dos homens e com os homens, mas ostenta ainda na severidade da máscara, no desdém da boca desgarrada, uma altaneira nobreza; e a ferida do teu sexo aberta como uma nova última esperança de recomeçar tudo desde o princípio como se fora a primeira vez a fuga para o sono e o sonho (...)



Luiz Pacheco- Escritor, crítico literário, polemista maldito, fundador da editora Contraponto, nasceu em Lisboa em 1925. Próximo da tendência surrealista, escreveu entre outras obras, 'O Teodolito' (1962); 'Comunidade' (1964); 'Crítica de Circunstância' (1966); 'O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor' (1970); 'Literatura Comestível' (1972); 'Memorando Mirabolando' (1995).

5 comentários:

Anónimo disse...

"(...) hoje chego a considerar aquelas crises um verdadeiro privilégio, porque foram uma especie de excursão extramuros, uma pequena viagem turistica pelo lado selvagem da consciência. As minhas angústias permitiram-me espreitar a escuridão; e só quando já estivemos aí(...) podemos entender o que significa viver no outro lado" (...) "os chamados loucos são aqueles individuos que residem de uma forma permanente no lado sombrio. (...) A essência da loucura é a solidão. Uma solidão tão superlativa que nao cabe dentro da palavra solidão e que nao pode ser imaginada por quem não a conheceu. É como estar no interior de uma campa(...). Durante muito tempo achei que escrever podia resgatar-me da dissolução e da escuridão (...) depois compreendi que aqueles a quem chamamos loucos estão muitas vezes para além de qualquer resgate (...) por último, em determinada ocasiões excepcionais a literatra poderia mesmmo acabar por ser prejudicial para o autor (...) quando o que se escreve começa a fazer parte do delírio; quando a louca da casa, em vez de ser uma inquilina alojada no nosso cérebro, se transforma no edificio inteiro e o escritor, num prisioneiro dentro dele."

rosa montero, «louca da casa»

Anónimo disse...

"Arthur Rimbaud, esse poeta deslumbrante que redigiu toda a sua obra antes dos vinte anos. (...) desde pequeno (..) adiquiriu hábitos de um autêntico demente (..) não se lavava, não se penteava, vestia-se como um mendigo, gravava blasfémias à navalha nos bancos do parque, vadiava pelos cafés como um lobo sedento tentando que alguém o convidasse para um copo, contava aos gritos como gozava sexualmente com as cadelas vagamundas e tinha sempre na boca um cachimbo com o fornilho virado para baixo. (...)Conheceu Paul Verlaine, outro poeta excelente e um perfeito tarado, alcoolico e violento. Apaixonaram-se tórrida e venenosamente (...) batiam-se, insultavam-se, ameaçavam-se, esfaqueavam as mãos um do outro nos cafés. E, ao mesmo tempo, escreviam sem parar" -consumia haxixe e absinto - "(...)fazia-o de uma forma consciente e voluntária, ansioso por quebrar os laços com a pouca racionalidade que lhe restava, permitindo-lhe dar o salto para a dinvindade. Tudo isto o conduziu a um estado de perturbação constante (...) Não só não se convertera em Deus como estava mais enterrado do que nunca no demonismo. Em Novembro de 1875, Arthur Rimbaud queimou os seus manuscritos e deixou de escrever para sempre. Tinha vinte e um anos. Passado muito tempo a irmã perguntou-lhe por que tinha abandonado a escrita; e ele respondeu que continuar com a poesia o teria elouquecido. Por isso não lhe bastou o silêncio, e, tendo sido todo palavras tentou ser todos os actos e nada mais do que os actos. Ou seja, tentou trasformar-se num fazedor. Quis encontar lucidez através de uma vida básica (...) Quando morreu tinha 37 anos."

Anónimo disse...

os dois exertos, o primeiro não conseguiu que aparecesse; era a respeito da loucura, e não apenas sobre Rimbaud de qualquer forma são da Rosa Montero no livro «A louca da Casa».

Maria Ana Ferro disse...

Continuo a compreender a loucura. A compreender como a loucura é um meio para as melhores palavras, como é capaz de nos transportar para outros mundos e nos dá coragem para o mais.
A sanidade afasta-nos da criatividade e repito da coragem.
Continuo no entanto, e sempre reconhecendo o génio, a rejeitar a sua utilização para a parte de cá e de lá da vida.

Laura Paz disse...

Já cometi o imenso equívoco de acreditar que a insanidade e a dor patologicamente alimentada poderiam ser passaportes para qualquer lampejo de grande criatividade. Mas isso foi a bastante tempo atrás. Gostei da abordagem.